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Sobrevivente da enchente foi arrastada por 18 quilômetros, agarrada ao telhado de casa

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Janete Maria Nardini Zílio não sabe nadar, nem gosta de água. Aos 57 anos e há 35 morando à beira do Rio Taquari, jamais ousou banhar-se no leito que corre diante de casa. Na madrugada do último dia 5, Janete foi arrastada 18 quilômetros rio abaixo, agarrada a um telhado de zinco que cambalhotava em meio à correnteza que matou 16 pessoas e destruiu 80% da estrutura urbana de Muçum, no Vale do Taquari.

Das quatro pessoas que estavam em casa com ela, uma morreu e duas continuam desaparecidas. Um cunhado sobreviveu abraçado ao topo de uma árvore. Janete foi resgatada na entrada do município, praticamente laçada por moradores, que jogaram uma corda ao ouvirem gritos de socorro vindos do meio do rio.

Foto: Gaúcha ZH | reprodução

Havia sido um final de semana festivo na propriedade dos Zílio, uma das mais antigas famílias de imigrantes italianos que se estabeleceram em Muçum no final do século 19. Instalados em Linha Alegre, localidade rural a cerca de 20 quilômetros do centro, eles cultivavam uva, tomate, feijão e mantinham quatro vacas de leite em um sítio de 14 hectares. No domingo (3 de setembro), o marido de Janete, Raul, e o irmão gêmeo, Roque, completavam 61 anos de idade.

A chuva que persistia desde a noite anterior não atrapalhou o churrasco de aniversário. Na casa recém-construída de Raul e Janete, estavam Roque e a esposa, Marta, outro irmão mais velho, Sérgio, 66 anos, a mulher dele, Terezinha Torres da Silva, 68, e o patriarca dos Zílio, Deoclydes José, 94.

Houve festa e cantoria até o fim daquela tarde, quando Marta foi embora para Bento Gonçalves, onde mora. De férias, Roque decidiu ficar mais alguns dias, seguido por Sérgio e Teresa, ambos aposentados e residentes em São Leopoldo.

A segunda-feira (4) seguiu enfarruscada, mas sem impedir que Janete ordenhasse as vacas e passasse a manhã fazendo queijo. Logo depois do almoço, a chuva apertou.

Pressentindo a cheia do rio, Raul pegou o carro e foi ajudar um vizinho a recolher os pertences de uma zona alagadiça. Por volta das três da tarde, a luz se foi. Às seis, escureceu. Raul não voltava e a água espreitava a estrada, cada vez mais perto da casa dos Zílio.

— Tenho 94 anos e nunca a água chegou aqui. Não é hoje que vai acontecer — dizia Deoclydes.

Pouco depois, quando o rio se aproximou da propriedade vizinha, ele foi o primeiro a convocar todos a irem até a casa velha da família, mais alta e onde havia morado nos últimos 65 anos. Raul, que ajudara os amigos e tentara voltar para a mulher, se viu cercado de água e, a distância, do outro lado da estrada, enxergava só os vultos dos parentes indo de uma casa a outra.

Encharcados pela chuva, Deoclydes, Janete, Roque, Sérgio e Terezinha vestiram roupas velhas esquecidas na residência e começaram a se preparar para o pior. A água entrou primeiro pelo banheiro, logo alcançando a sala. Janete e a cunhada colocaram uma cadeira sobre o balcão, acomodando Deoclydes no ponto mais alto. Abraçadas e agarrando o sogro pela mão, sentaram-se sobre o móvel.

Com água pela cintura, Sérgio zanzava a esmo pela casa, e Roque jogava azeite sobre guardanapos dentro da panela de fazer polenta, improvisando um candeeiro na escuridão. Tudo estalava, e veio um estouro. A garagem desmoronou.

Em seguida, uma segunda garagem desabou sobre o caminhão Mercedes da família. Lá dentro, Janete sentiu a casa se deslocando. Na sequência, uma correnteza invadiu tudo, derrubando a fachada e botando o imóvel de joelhos.

— Descemos todos embaixo d’água, mas sobrevivemos. Daí a pouco, o Sérgio desceu e não voltou mais. Logo em seguida, meu sogro chamou socorro: “Me ajudem, não me deixem morrer” — lembra Janete.

Do outro lado da estrada, impotente sob a chuva, Raul ouvia os apelos do pai em desespero. Dentro de casa, Janete colocou os pés no parapeito de uma janela e segurou-se em uma tábua solta perto do forro. Dali, pedia para Deoclydes que viesse mais perto.

— Vô, vem mais perto de mim, eu te puxo. Aqui tem a janela e consigo te arrastar pra cima — dizia.

— Mas ele já não tinha mais força e eu não podia me largar — conta Janete.

Logo em seguida, uma nova onda derrubou as paredes restantes. Sem enxergar Sérgio e Deoclydes e mergulhada na água, Janete procurava onde se agarrar. Ao ver o telhado flutuando, segurou-se na beira da folha de zinco. Quando percebeu, tinha Terezinha abraçada às pernas. Ela ainda tentou fazer a cunhada subir escalando seu corpo, mas a parente escapou e nunca mais foi vista. Longe dali, Roque se abraçou ao topo de uma árvore.

Numa manobra arriscada, Janete conseguiu jogar o corpo no topo do telhado. Estendida sobre o zinco e com os dedos grudados às bordas onduladas da cobertura, começou a ser arrastada pela correnteza. Com o Taquari escapando ao leito, o telhado era uma jangada sem freios em meio ao rafting involuntário da chuvarada.

Por um tempo, que imagina ser quase duas horas, Janete desceu o Taquari rumo à cidade. Gritava por ajuda, via nos faróis dos carros na estrada uma vã esperança de socorro e bebia água “com gosto de óleo diesel”. Janete vomitou, desviou de galhos e destroços jogando o corpo de lado e, vez por outra, soltava uma das mãos para retirar do rosto as folhagens trazidas pela água.

Numa região do Taquari conhecida como “a louca”, por causa da sucessão de quedas d’água num trecho curto do rio, o telhado deu ao menos três cambalhotas, numa repetição de mergulhos aos quais Janete até agora não entende como conseguiu sobreviver.

— Eu não soltei. Fiquei ali, segurando as orelhinhas do zinco, só pedindo “Jesus vem me salvar. Jesus, preciso de ti”. Bebia aquela água e vomitava tudo de volta — recorda.

Passava das duas da manhã, e Samuel Pertille olhava a tempestade pela janela de casa, no bairro Fátima, entrada leste de Muçum, quando ouviu ao longe pedidos de ajuda. Quase ao mesmo tempo, saiu à rua seu tio, o pedreiro Luiz Pertille, procurando quem clamava por socorro.

Observando a curva do Taquari diante de casa, Luiz enxergou Janete sobre o telhado. Gritou para o sobrinho buscar cordas e se dirigiu a um barranco. Janete chegou bem próximo, mas o rio formou um redemoinho que a sugou de volta. No giro seguinte, Luiz jogou 10 metros de corda em direção à mulher.

— Eles gritaram para eu pegar firme, mas eu soltei um pouquinho. Acho que estava com medo. Daí sim, peguei e pulei. Caí na água e saí batendo os pés para tentar chegar do outro lado o mais rápido possível — conta.

Em terra firme, Janete percebeu que havia sido salva por Luiz e um sobrinho, Leandro Gonçalves, os dois pedreiros que haviam construído sua casa no início do verão. Tremendo e chorando, recebeu curativos nas pernas maceradas, café, calmante e cama.

Janete reencontrou o marido somente na noite daquela terça-feira, mais de 24 horas após a inundação. Perdeu a casa nova, concluída em dezembro, fruto de um investimento de R$ 300 mil, e as duas residências antigas da família. As quatro vacas de leite morreram afogadas, a plantação foi arrasada e os dois caminhões, destruídos. Do patrimônio reunido em 35 anos de casados, restou só a roupa do corpo.

Janete está com os joelhos esfolados, as pernas roxas e um corte de cinco centímetros no tornozelo esquerdo. Abrigado na casa de parentes, em Muçum, o casal ainda não sabe o que fazer da vida, mas Janete tem uma certeza: seja o que for, será longe do Taquari.

Roque foi resgatado do topo da árvore de barco, às 10h de quarta-feira (dia 6). Sérgio teve o corpo encontrado na quinta (7) e foi sepultado sábado (9), em Linha Alegre. Terezinha e Dioclydes seguem desaparecidos.

Fonte: Gaúcha ZH

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